O desafio da ressocialização IV

Estado e municípios sem entrosamento

Para promotor, prefeituras deveriam desenvolver política sócio-educativa mesmo sem verba estadual

Folha de Londrina | 30 de outubro de 2008

Uma das principais dificuldades que o Estado encontra é a falta de acompanhamento dos adolescentes quando eles voltam para suas comunidades "Em regra, não há uma política sócio-educativa nos municípios", afirma o coordenador do Centro de Apoio das Promotorias da Criança e do Adolescente (Caopca), do Ministério Público, Murilo José Digiacomo. "Não existe uma articulação entre a Secretaria de Estado da Criança e da Juventude e os órgãos municipais que deveriam atender esse jovem (infrator) quando ele é desligado do programa (privação de liberdade ou ainda cumpre medidas em meio aberto)", complementa.

"É difícil ver um município que assuma essa responsabilidade porque eles acham que não é deles", acrescenta. O coordenador do Caopca ainda lembra que muitos municípios também se recusam a receber encaminhamentos vindos dos Centros de Sócio-educação (Cense).

O artigo 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina a municipalização das políticas de atendimento, ou seja, a responsabilidade no desenvolvimento de tais projetos é dos municípios. De acordo com esta lei, assim como prevê a Constituição Federal, o cumprimento das medidas sócio-educativas em meio aberto também é uma das atribuições municipais, enquanto a privação de liberdade e, em muitos casos, o co-financiamento das atividades desenvolvidas pelos municípios, são administradas pelo Estado.

Entretanto, uma das principais dificuldades que o Estado encontra na continuidade das medidas sócio-educativas em meio fechado é a falta de um acompanhamento dos adolescentes egressos quando eles voltam para suas comunidades e que pode evitar a reincidência.

Assim, quando o município não está preparado ou não desenvolve nenhum tipo de política sócio-educativa, os adolescentes ficam sem atendimento, o que não deveria acontecer e que, de acordo com Digiacomo, pode causar sanções ao poder municipal. "O fato de não ter um programa não impede que haja um atendimento pelos órgãos públicos que deveriam executá-lo. O município tem responsabilidade de atender de qualquer jeito, tenha o programa, tenha a política ou não tenha", argumenta o promotor.

Nestes casos, setores municipais como Educação, Ação Social, Saúde, Cultura, Esporte e Lazer podem realizar o acompanhamento dos adolescentes. "A responsabilidade persiste."
O governo estadual pode se responsabilizar pelo co-financiamento das medidas, no apoio técnico e na capacitação para os agentes municipais. O coordenador de sócio-educação da Secretaria de Estado da Criança e Juventude (SECJ), Roberto Peixoto, afirma que entre 2004, 2005 e 2006 o Estado passou em torno de R$ 6 milhões para os municípios destinados à execução de medidas em meio aberto por meio do programa Liberdade Cidadã. No ano passado foram R$ 2,6 mi e neste ano R$ 4,3 mi.

Para evitar o simples repasse de recursos, que nem sempre eram investidos em programas para os adolescentes infratores, o Estado disponibilizou verbas às prefeituras com maiores demandas para a realização específica do programa Liberdade Cidadã junto com a SECJ. Entre os 50 municípios selecionados, quatro não acessaram o recurso e, de acordo com Peixoto, deixam de atender os adolescentes. "O juiz aplica a medida, mas o menino fica sem a execução dela. A tendência é reincidir, pois não acontece nada com ele na prática", diz.

"O município não é obrigado a aceitar o recurso do Estado, mas tem que desenvolver a política, então, com recursos próprios. Eu não posso obrigar o município a aceitar recursos do Estado se ele não quer, agora eu posso obrigá-lo a desenvolver uma política sócio-educativa, claro, com recursos do próprio município", explica Digiacomo, que orienta os promotores que procuram o Caopca a entrarem com uma medida judicial e obrigarem o município a criar programas na área.


Política ainda é desafio
O coordenador do Centro de Apoio das Promotorias da Criança e do Adolescente (Caopca), do Ministério Público, Murilo José Digiacomo, define uma política sócio-educativa como "um conjunto de ações que atendam o adolescente infrator quando este cumpre medidas em meio aberto."

"Os municípios às vezes têm um programa sócio-educativo, só que eles não têm uma sistemática pra atender esse tipo de demanda que é encaminhada pelas unidades de internação. E aí o adolescente que estava até ontem em regime de privação de liberdade, hoje deixa o sistema, é encaminhado para uma liberdade assistida (LA), por exemplo. Só que ele vai ser encaminhado por uma LA como se fosse um adolescente que não tem nenhuma passagem anterior pela vara da infância", afirma Digiacomo.

O promotor afirma que a política sócio-educativa é composta por programas articulados, que atuam no apoio à familia, no tratamento da drogadição, na reinserção no sistema de ensino, na geração de emprego e renda, e inserção em programas de aprendizagem e profissionalização. "O compromisso do poder público não é só com a aplicação de uma medida, é com a solução do problema que levou à pratica da internação e que resultou na aplicação da medida, é com a proteção integral daquele adolescente. Esse é que é o objetivo de qualquer intervenção que venha a se fazer."

Digiacomo aponta ainda a importância da prevenção. "Temos que prevenir o uso de droga, a evasão escolar, são traços marcantes na imensa maioria dos adolescentes. E (dar) orientação e apoio às famílias, para fazer com que as famílias assumam suas responsabilidades. Uma vez que ocorra a infração, temos que ter estratégias para resolver o problema, atender o adolescente, evitar a reincidência e protegê-lo quando ele vai para a unidade e até evitar que ele vá. Se nós tivermos uma política e programas em meio aberto que funcionam, não precisa nem encaminhar para internação".


Pelo menos três prefeituras não aceitaram recursos
Muitas cidades se recusam a receber encaminhamentos vindos dos Centros de Sócio-educação Curitiba - Entre os 49 municípios selecionados para receber recursos do Programa Liberdade Cidadã, Pinhais (Região Metropolitana de Curitiba), Guaratuba (Litoral), Pinhão (40 km ao sul de Guarapuava) e Santo Antônio da Platina (Norte Pioneiro) não acessaram a verba oferecida pelo Estado.

A Reportagem da FOLHA conseguiu conversar apenas com a assessoria de imprensa do município de Pinhais. A equipe teve, por meio dela, a informação de que os responsáveis pela área "não têm o que responder sobre isso". Já os representantes dos outros municípios sequer foram localizados. A Reportagem tentou contato durante três dias seguidos, e, até o fechamento desta edição, não havia recebido retorno.


Legislações que determinam as atribuições municipais:
Estatuto da Criança e do Adolescente
Artigo 88.
São diretrizes da política de atendimento: I - municipalização do atendimento; II - criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais;
III - criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa;
IV - manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do, adolescente;
V - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional;
VI - mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade.

Constituição Federal
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no art. 204.

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;
II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

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