O desafio da ressocialização III

Infratores estão longe dos bancos escolares

92% dos adolescentes que cometeram atos graves ou gravíssimos na Capital e região não vão às aulas

Folha de Londrina | 28 de outubro de 2008

Mais de 90% dos adolescentes em conflito com a lei de Curitiba e região metropolitana que cometeram atos de infração graves ou gravíssimos estão fora da escola. O índice de 92%, divulgado pela juíza da Vara do Adolescente Infrator de Curitiba, Maria Roseli Guiessman, é um indicador de que o problema da criminalidade na juventude ultrapassa a jurisdição policial e, para ser resolvido, precisa de políticas públicas sérias de educação.

Considerando também outros tipos de delitos menos graves, ainda de acordo com o levantamento da Vara, do total de 2.272 adolescentes que passaram pela Delegacia do Adolescente (DA) entre 1º de janeiro e 9 de outubro deste ano, 1.008, correspondente a 44,3% do jovens, não frequentavam a escola (veja o quadro ao lado). Entre eles, 12 não eram alfabetizados. Os demais disseram que estudavam.

O acesso à educação é previsto no Artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ''visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.''

''A parte educacional é muito falha. A mãe não insiste no estudo do filho, e ele começa a ter falha de aprendizagem. Devido a todo esse problema familiar e econômico, a maioria dos adolescentes que vêm aqui são os que têm uma condição econômica menos favorecida. Todo esse conjunto automaticamente influencia o jovem até no rendimento escolar. Aí ele identifica que não tem o mesmo rendimento que os outros e começa a faltar perspectiva de vida. O que acontece, ele não tendo um objetivo de vida, vendo que o fim pode ser ficar preso e tudo mais, o que ele faz? Ele começa a cometer atos infracionais como partir para a droga e coisas assim''. A explicação é da delegada Aline Manzatto, da DA, sobre o processo comum do afastamento da escola entre os jovens atendidos pela delegacia.

''E é evidente que a escola hoje não tem, nem na graduação e nem na pós-graduação, feito capacitações para que os professores saibam tratar esse adolescente (infrator), que é diferente'', complementa Maria Roseli. ''E aí o que acontece? (A escola) também não dá conta. E ela acaba trazendo o problema aqui na Vara. Daqui, a gente tem que fazer todos os encaminhamentos. (O adolescente) vem aqui por quê? Porque brigou na escola, ameaçou, agrediu o professor. E vai fazer o quê?'', indaga a magistrada.

Em relação à atuação das instituições de ensino, a secretária de Estado da Criança e da Juventude, Thelma Oliveira, acredita que a escola não está preparada para atender crianças e adolescentes que apresentam dificuldades em se adaptar ao sistema educacional. Este fator contribui para a evasão escolar e a proximidade com atos infracionais. ''A escola vai muito bem com aquele aluno que sabe estudar e tira boas notas. Mas ela tem muitos desafios de incluir aquele que tem dificuldade de aprender e aquele que não quer estudar, que tem dificuldade em relação ao horário, à disciplina, às tarefas. Então nós precisaríamos trabalhar nesta ponta do apoio da família, da inclusão escolar efetiva mesmo. A escola tem que aprender a trabalhar mesmo com aqueles que quebram regras, porque são eles que mais precisam retomar os estudos'', afirma a secretária.

Educação na medida sócio-educativa
Enquanto cumprem todas as medidas sócio-educativas que são determinadas pela Vara do Adolescente, os jovens são acompanhados na frequência e no aproveitamento escolar. A evasão escolar é considerada como descumprimento de medida. O adolescente pode ser encaminhado a uma unidade de privação de liberdade quando deixa de frequentar a escola. Quando privados de liberdade, os jovens também recebem acompanhamento escolar por meio do Programa de Educação nas Unidades Sócio-educativas, desenvolvido nos 18 estabelecimentos do Estado por profissionais da Secretaria de Estado de Educação.

No Centro de Sócio-educação (Cense) Fazenda Rio Grande, dos 30 jovens que cumprem medidas sócio-educativas, nenhum completou o ensino fundamental e cinco não chegaram à 4 série. A coordenadora do Cense, Margarete Rodrigues, afirma que quando chegam à unidade, o valor em relação à educação é negativo, pois os adolescentes não percebem a importância da convivência escolar. ''A escola não é uma referência positiva, não é um valor importante. A maioria dos nossos meninos não tem futuro, não tem uma perspectiva. O que você vai ser? Não existe isso. 'Se eu viver até 18 anos está bom. A maioria dos meus amigos morre com 20 anos, não passa dos 20''', conta Margarete. No entanto, a diretora acredita que o valor sobre a escola muda durante a passagem dos adolescentes pela unidade, com as atividades educacionais desenvolvidas com os jovens.


Falta sistema específico para egressos
Depois que saem da privação de liberdade, muitos adolescentes encontram dificuldades na continuidade dos estudos. "O sistema educacional teria que criar um mecanismo, um tipo de ensino modular diferente, para que ele possa continuar estudando. Mas não dentro de uma turma com defasagem de idade-série e também, talvez, não com uma educação para jovens e adultos que foi feito para adultos mesmo. Então, até isso precisa ser resolvido no sistema educacional que ainda não está equacionado", sugere a secretária de Estado da Crinaça e Juventude, Thelma Oliveira.

Mesmo não enquadrados nas exigências da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) -que estabelece que, no sistema de educação para jovens e adultos, apenas maiores de 15 anos podem concluir o ensino fundamental, e que o ensino médio pode ser concluído apenas por pessoas com mais de 18 anos-, a secretária acredita que os adolescentes entre 13 e 17 anos, que já cumprem medidas sócio-educativas têm uma experiência "mais dura" e não se adaptam ao ensino regular. "O próprio sistema escolar ainda não encontrou uma forma de inclusão oficial destes adolescentes", repreende Thelma.

A falta de escolarização dos jovens egressos do sistema sócio-educativo também é uma dificuldade nos encaminhamentos para o futuro profissional. "Os adolescentes não têm formação para entrarem nas exigências de um curso de qualificação profissional e são rejeitados pelo mercado de trabalho", afirma o coordenador de sócio-educação, Roberto Peixoto. Para facilitar a entrada dos adolescentes no mercado de trabalho, são realizadas ações como o Programa de Qualificação Profissional do Adolescente Aprendiz, que prevê vaga em órgãos estaduais para os jovens que cumprem medidas em meio aberto, na condição de que estejam estudando. Ao todo são 450 vagas efetivadas em todo o Estado.

Responsabilidade
Uma questão que gera polêmica quando o assunto "jovem infrator" está em debate é a parcela de responsabilidade do adolescente, quando ele deve cumprir um dever, como por exemplo, o de estudar. Sobre o assunto, a secretária ressalta a importância da iniciativa do próprio jovem. "A gente tem que contar com a tomada de consciência do adolescente. Porque o que acontece com a vida dele é também reflexo das suas escolhas. Então, essa responsabilização sobre seus atos é também um fator importante no processo sócio-educativo", argumenta.

A equipe da FOLHA tentou contato com representantes da Secretaria de Estado da Educação sobre o trabalho com os adolescentes com dificuldade de adaptação à estrutura escolar e sobre os mecanismos de reinserção dos jovens egressos do sistema de privação de liberdade, mas o responsável por esse setor não se encontrava na secretaria durante o dia de ontem.


Especialistas listam diversos fatores para infrações
A evasão escolar não é o único fator que contribui para que o adolescente cometa um ato infracional. Os especialistas atuantes na área foram unânimes em apontar um conjunto de fatores para o envolvimento dos jovens em infrações. Entre eles, a situação sócio-econômica de sua família, a estrutura familiar, a falta de acesso à educação e a serviços básicos de atendimento.

"Ele é vítima de toda uma sociedade e, ao mesmo tempo, ele é responsabilizado", afirma a presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Paraná (OAB-PR), Márcia Caldas. Ela acredita que a falta de um modelo aos adolescentes possibilita que eles se tornem infratores. "Para ele ter um referencial de escolha, tem que ser tratado bem, com dignidade, todas as condições dignas de aprendizagem, de atendimento especializado. Quando ele vive esse momento, tem sim uma estrutura, uma outra possibilidade de vida. Aí sim ele pode dizer que fez a escolha de ir para a criminalidade. Mas o sujeito não tem essa opção, a sociedade não a dá e culpa sempre", complementa.

Para a delegada Aline Manzatto, da Delegacia do Adolescente, as pessoas vêem os adolescentes infratores a partir de uma realidade que não condiz com a dos jovens. "Julgam de uma forma que não tem a visão real da situação, como se aquele adolescente infrator tivesse a mesma condição financeira, social, cultural e educacional que ela", afirma. "Nenhum (adolescente) que entrou aqui até hoje falou que era bandido porque quer."

"Na prática, eles não são prioridade absoluta. O orçamento deles (órgãos públicos) ainda não é. Precisamos que o Estatuto seja garantido na prática", protestou a conselheira tutelar Jussara da Silva Gouveia, que ressalta que a maioria dos adolescentes em conflito com a lei tem seus direitos violados desde a infância. "Aquele que não é assistido, um dia acaba violando o direito de alguém", diz.

Compartilhando dos argumentos apresentados pelos demais especialistas, a secretária da Criança e Juventude, Thelma Oliveira, acrescenta um outro foco de análise para o contexto dos adolescentes infratores. "Por outro lado, a infração não pode ser justificada por uma falta (de oportunidades). Ela explica, mas não justifica. Esta opção, esta escolha de modo torto de se expor ao risco e colocar outras pessoas ao risco também não é um bom caminho. É isso que gente procura trabalhar com eles. Na verdade, a ausência e falta de proteção na infância podem explicar o ato infracional, mas não podem justificar do ponto de vista da sua consequência social", afirma.

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