O desafio da ressocialização I

FOLHA inicia série de reportagens, sobre participação de jovens no tráfico

Folha de Londrina | 23 de outubro de 2008


Aos 17 anos de idade, João (nome fictício), foi acusado por tentativa de homicído e ficou, aproximadamente, um ano cumprindo medida sócio-educativa em privação de liberdade nos Centros de Sócio Educação (Cense) São Francisco, em Piraquara (Região Metropolitana de Curitiba), e Fazenda Rio Grande, no município de Fazenda Rio Grande (RMC). Antes de "cair preso", como diz, trabalhou no tráfico de drogas, roubou e esteve envolvido em crimes.

Mesmo depois de passar por medidas que têm o objetivo de ressocializar o adolescente infrator e dar a ele novas alternativas na sociedade, o jovem voltou ao tráfico de drogas. (Leia entrevista nesta página). Dados da Vara do Adolescente Infrator de Curitiba mostram que 36,98% dos adolescentes do sexo masculino apreendidos em 2008 são reincidentes, ou seja, voltaram à criminalidade depois de cumprirem alguma medida sócio-educativa. Entre as meninas, o índice é menor. A reincidência chega a 23,23%. Os números da Vara do Adolescente Infrator são referentes ao período de janeiro a 9 de outubro deste ano.

Para o coordenador de sócio-educação da Secretaria de Estado da Criança e Juventude (SECJ), Roberto Peixoto, um dos fatores que dificultam a reinserção do adolescente na sociedade e possibilitam a reincidência é a falta de um atendimento para sua família e para a comunidade onde o jovem vive. "Não adianta criar oportunidades para aquele menino se a família não entender o movimento que ele está fazendo", diz.

A SECJ não dispõe ainda de uma sistematização dos adolescentes reincidentes no Estado, por ser a medida de liberdade assistida -em que o adolescente cumpre a medida em meio aberto e é acompanhado por uma equipe técnica- uma responsabilidade dos municípios. Peixoto destaca municípios como Foz do Iguaçu, Guaíra e Medianeira, que têm um complicador para a ressocialização dos jovens, já que compõem a rota do tráfico. E outros apresentam um agravante como grandes centros urbanos, áreas de ocupação urbana irregular, áreas de periferia e falta de oportunidades, que dificultam o resgate dos jovens.

A secretária de Estado da Criança e da Juventude, Thelma Oliveira, acredita que nem sempre o tempo o nas unidades de internação é suficiente para alguns adolescentes com trajetória infracional grave. "O que as estatísticas dão conta é um alto grau de reincidência nos delitos mais graves, então, o que é possível compreender deste processo? O adolescente que tem uma trajetória infracional maior e, são os que vem para as unidades de internação, eles tendem a repetir. Esse histórico infracional faz parte da vida do adolescente. E este período, muitos deles que ficam conosco, às vezes não é suficiente para fazer uma reestrutura na sua vida para ele voltar a estudar, enfim, para ele se reorganizar", explicou a secretária.

De acordo com ela, um fator importante para o resgate dos jovens em conflito com a lei é organizar uma rede de apoio, referências positivas na família, na comunidade, na escola, que podem apoiar o adolescente nessa nova caminhada.

"Isso é feito quando ele está interno conosco. Nós buscamos identificar vínculos positivos na família, pessoas que eles gostam e que se importam, exemplos que são bons para ele para ver se conseguem, a partir desta rede de apoio, eles conseguem fazer uma nova trajetória social e de convívio afastado do crime. Agora, isso nem sempre é possível", acredita.


Envolvimento com drogas é constante
"A maior dificuldade que leva ao descumprimento das medidas sócio-educativas e à reincidência, não temos dúvida alguma, é o uso de substância entorpecente", afirma a juíza titular da Vara do Adolescente Infrator, Maria Roseli Guiessman, há quatro anos e meio no cargo.

Só em 2008, 118 adolescentes foram apreendidos pelo crime de tráfico de drogas e 47 por homicídio. De acordo com a juíza, grande parte dos crimes de lesão corporal e ameaça também acontecem em decorrência do uso de narcóticos.

O avanço da criminalidade entre os jovens é um assunto cada vez mais evidente, principalmente quando há envolvimento com entorpecentes. "Todo mundo fala: doutora, a gente tem que mudar a placa da vara para ‘Vara dos adolescentes drogaditos’, tamanha é a motivação para o ato infracional do uso, do efeito da droga", conta.

Roubos
Entre janeiro e outubro deste ano, passaram pela Delegacia do Adolescente, em Curitiba, 2.272 jovens. De acordo com a Vara dos Adolescentes Infratores, neste ano, o principal crime cometido pelos jovens apreendidos pela delegacia é o roubo, com 372 autores apreendidos, lesão corporal (276), furto (266), porte de entorpecentes (200) e ameaça (135).


Medidas estão previstas no ECA
As medidas sócio-educativas são determinadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aos adolescentes de até 18 anos com o objetivo de ressocializá-los depois que cometem um ato infracional. A medida é determinada de acordo com as circunstâncias do ato infracional e a gravidade da infração.

Desta forma, a Vara do Adolescente Infrator escolhe entre oito penalidades: advertência, reparo do dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação. "A lesgilação é perfeita. Se fosse aplicada, teríamos um índice de reincidência muito menor. E hoje, se tivesse um tratamento eficiente para drogadição, tenho certeza que baixaria o índice de reincidência porque a maioria da reincidência é por conta da droga", afirma a juíza da Vara dos Adolescentes Infratores de Curitiba, Maria Roseli Guiessman.

As medidas em meio aberto são consideradas as com maior eficiência na aplicação, em que o jovem está no contexto de sua comunidade e conta com o envolvimento da sua família no processo. "A medida tem um índice de recuperação maior. A possibilidade de trabalhar um menino que não tem histórico infracional é muito maior e melhor que um menino que está há dois, três anos no crime, como os da internação", compara o coordenador de socioeducação da SECJ, Roberto Peixoto.

A juíza também analisa o trabalho de medidas sócio-educativas desenvolvido no Paraná como um modelo para o Brasil. "O Estado tem investido muito. Nestes últimos quatro anos foi investido muito nesta parte, principalmente, na medida de internação, que é a mais grave, que é o equivalente a uma cadeia. É importante destacar isso porque pelos termos que a gente usa as pessoas dizem que os adolescentes não vão para a cadeira, mas o que é a internação. A internação é uma cadeia. Tem grade, tem cela. Claro, tem muitas atividades. O objetivo é ressocializar", explicou.


No jornal foi publicada a entrevista editada. Aqui coloco a entrevista inteira com nosso personagem. Ficou grande, mas acredito que vale a pena:

‘Pra muita gente é melhor morto do que preso’
O que aconteceu para você ficar em uma unidade de internação?
É briga de gangue, era treta de um lado, treta de outro, foi aumentando, daí na frente do colégio, no primeiro dia de aula eu troquei tiro com os caras e acabei caindo preso.

Quando foi isso?
Foi dia 12 de fevereiro de 2007.

E aí você foi pra delegacia?
Eu fiquei dois dias na delegacia da Fazenda, fui pra delegacia de Mandirituba, num sábado, seis horas, eu fui pra Delegacia do Adolescente, no Tarumã. Fiquei dois meses e 17 dias lá, fui pro São Francisco em Piraquara, dois dias antes de completar quatro meses lá eu fui pro educandário da Fazenda. Aqui faltava um dia para completar sete meses e eu saí.

Foi pra liberdade assistida?
Liberdade assistida.

E como foi na liberdade assistida?
Eu tinha que me apresentar todo o dia 6, estar estudando, fazendo curso. Também quando eu saí eu comecei a fazer estágio, aí eu tinha que justificar o estágio todo mês.

Eles acompanhavam, sabiam o que você estava fazendo?
O que eles acompanhavam mais eram os estudos, era o que eles mais corriam atrás pra saber.

Tinha bastante liberdade pra você?
Era bem tranqüilo, era só uma vez por mês e não era muito demorado. Era bem mais solto.

E o que você faz hoje?
No momento eu estou parado.

Escola?
Escola, eu vou voltar a estudar hoje de novo.

Como você ganha grana?
Ah, tem vários tipos, quando não tem nada pra fazer, a gente faz alguma função. Levanta um dinheiro, sai fora, volta...

O que é fazer função?
É a maneira mais fácil de ganhar dinheiro. Quando tem alguém de atitude, que sabe que dá pra confiar, a gente sai pra roubar, mas como não tem, fica na vila vendendo droga.

Você vende droga na vila às vezes?
De vez em quando eu vendia. Já faz uns dias que eu não mexo mais. Agora estou mais sossegado.

E por que você parou?
A namorada embaça, eu to pra ir morar onde ela mora. Aí lá não tem como, tem que dar um tempo.

Aqui é na Fazenda Rio Grande mesmo?
Aqui na Fazenda.

E você tira quanto com a venda de droga?
Depende da quantidade. Você sempre gira o dobro do que você paga por ela.

Você coordena lá?
Eu não, só dou uma força. De vez em quando, quando eu preciso de dinheiro e os caras precisam de ajuda eu dou uma força.

Você não tem medo?
Medo dá, mas fazer o que?! Precisa.

Do que você tem medo?
De voltar a ser preso, porque daí zica agora.

Só?
Só. É a única coisa, do contrário é tranqüilo.

E de repente morrer na mão dos caras?
Sei lá, depois que você já está envolvido, você sabe que você está correndo risco, você que escolheu. Só que depende, pra muita gente é melhor morto do que preso.

Por que você acha que começou a vender droga?
Influência de amigos, o dinheiro fácil, você acaba se envolvendo.

Você acha que compensa?
De certa forma sim, mas também não. Porque na hora que você tem o dinheiro ali é bom, mas o problema é que ele vai muito rápido. Você sempre gasta com tudo, gasta pra sair pra curtir, sempre arruma alguma coisa pra gastar, chama um amigo e come pizza, sai, se um não tem dinheiro você vai lá e banca. E assim vai o dinheiro.

Você usa droga?
Não, drogas químicas não é comigo.

Além do tráfico de drogas, tem mais alguma coisa?
Antes tinha... Eu ia roubar...

Você disse que já trocou tiro, mas acertou em alguém?
Ah, já.. Sempre rola uma função pior que a outra. Daí é foda.

Já acabou matando alguém?
Daí é zica...

Você disse que está pensando em voltar pra escola e vai sair daqui, o que você quer pra sua vida?
A tendência é arrumar um serviço, mas ainda faltam cinco meses pra pegar a reservista e os caras embaçam pra serviço. Nesse tempo você se vira como pode.

E o que você quer da sua vida?
Arrumar um serviço decente e que ganhe alguma coisa pelo menos.

Tem alguma coisa que você queria fazer no trabalho?
Um curso é bom, numa área especializada. Eu queria trabalhar com mecânica industrial.

Você estudou até que ano?
Até a oitava.

Dentro de casa como foi a sua vida, com seu pai, sua mãe?
Minha mãe e meu pai sempre foram tranqüilos. De vez em quando tinha alguma discussão, porque ela falava uma coisa que era certa, mas eu achava que era errada.

Eles trabalham?
Trabalham, os dois.

Como você entrou pra vender droga, alguém te ajudou?
Não é alguém, independente de onde você mora, você sempre conhece alguém. Desde os melhores até os que você considera piores. Você sempre se envolve, você faz uma amizade ali e tudo fica mais fácil.

E você acha que dá pra viver numa vila assim sem se envolver?
Só se o cara quiser mesmo.

E você não queria?
De certa forma queria, mas sempre tem alguma coisa que te empurra.

O que faz com que você não saia, pare de vender?
No momento é a falta de ganhar dinheiro.

O que você vende?
Crack, pedra.

É o que dá mais dinheiro?
É.

Muita gente compra aí, da vila mesmo ou vem muita gente de fora?
Vem gente de fora, gente da vila, assim vai.

E você anda armado?
Depende, só quando ta com confusão com alguém, aí tem que andar.

Mas tem muita disputa?
Disputa não tem, só que sempre rola uma treta com alguém, por causa de uma coisa, de outra.

Mas tem gangue que disputa isso?
Não é gangue, são os caras que são unidos. Os caras unidos num canto fazem um corre num canto, os outros também são unidos na outra parte, daí um ajuda o outro.

Um quer vender mais droga que o outro?
Não, rola confusão por bastante coisa, um não vai com a cara do outro e começou a se envolver, quer se achar mais que o cara...

Quanto tempo você ficou internado?
Um ano e 14 dias.

Teoricamente seria pra te ajudar a voltar pra sociedade com uma outra alternativa. Você acha que ajudou?
De certa forma não, porque você entra lá, pratica uma coisa, só que lá dentro você encontra pessoas que fizeram coisas piores que você e de certa forma você se habitua, aquilo ali se torna normal pra você. Você sai e a tendência é piorar.

Você conhece muita gente que estava no educandário e que morreu?
Eu conheço dois. Um tinha a minha idade e o outro era mais novo. Um foi porque usava droga e o outro era treta de antes dele cair preso. Ele falou que ir matar os caras, ele saiu, não matou os caras e os caras mataram ele.

Você não tem medo que isso possa acontecer com você? Você tem treta com alguém?
Os caras que eu tinha treta, nenhum mora mais aí. No meio de treta não tem, é só não dar as costas pros caras, se der as costas, sempre tem um que cresce um olho.

Você disse que em partes não te ajudou, mas teve alguma coisa que foi positiva?
Tem coisas que fazem você pensar em não voltar a fazer a mesma coisa, mas não é tanta coisa que se compare ao que te influencia a você continuar sossegado. É onde você pesa, põe numa balança, pesa, escolhe o lado que você quer ir e seja o que Deus quiser.

Você quer ir pra qual cidade com a sua namorada?
Estou pretendendo me mudar pra Curitiba, pra outro lugar, não mudar de cidade, mas um lugar um pouco mais distanciado.

Mas por que, pra fugir da vida que você tem aqui?
Chega uma hora que você tem que dar um tempo. Se ficar demais naquilo, uma hora a casa cai, você fica visado. Você sai antes que a casa caia.

Mas aí você dá um tempo pra depois voltar tranqüilo ou quer sair pra sempre?
A tendência é sair e não voltar mais.

Você fez estágio, te ajudou e, alguma coisa?
Você tem um conhecimento de como é um ambiente de trabalho, te ensina a ter mais responsabilidade com as coisas.

Quando você faz estágio, você tem contato com pessoas que têm mais dinheiro que você e daí você acha que pode ser uma influência negativa pra voltar a vender droga, ganhar mais dinheiro, tentar se equiparar ao pessoal com quem você está vivendo?
É complicado. Não é por questão de mais dinheiro, mas a pessoa que estudou mais que você. Até o que eles foram, você se sente fora do seu lugar, o jeito que os caras conversam e você está acostumado com alguma coisa, já diferencia bastante.

Mas também não é uma possibilidade de você ver que tem muito mais coisa que você pode ir atrás do que você conhece?
Seria se fosse uma coisa comum onde você está. Você estudar, se formar, fazer alguma coisa, é normal, mas não é em todo lugar.

Então você acha que o estágio não te dá uma chance real de melhorar?
Você conhece gente legal, tem a noção da responsabilidade, mas acha que não te ajuda.De certa forma não. Você vai ter noção de um ambiente de trabalho, do que você quer e não influencia muito ali no outro lado da sua vida, na sua realidade fora do serviço.

Quando você saiu pra Liberdade Assistida, ter voltado pra tua vila, ajudou você a voltar a vender droga?
De eu ter voltado pra própria vila, não, mas foi por uma questão que precisava, necessidade.

O que você acha que fez você voltar a vender droga?
Falta de dinheiro.

A primeira vez você caiu por que?
Tentativa de homicídio.

Você matou um cara lá?
Não, foi só tentativa.

Mas você já derrubou um cara?
Ish... Não tem como pular essa parte, não?

Mas por que você derrubou o cara?
[silêncio]

Não quer falar?
Não.

O que você acha que faltou no estágio pra te ajudar na sua comunidade?
O estágio era trabalhado comigo, não com as pessoas que ficam a minha volta também.

E você acha que elas precisariam de alguma coisa também, de algum trabalho?
De certa forma sim.

Você conhece quem controla o tráfico lá da vila? Como funciona?
Tem bastante, uns pá em cada canto. Uns controlam, nas outras partes ficam os outros menores cuidando.

Você cuida ali?
Não, eu faço os corre pra mim, que fazer corre pros outros...

Você tem uma boca?
Tem um lugar na nossa vila, os caras vão comprar. Quando a gente está lá, se tem, vende.

E você consegue com outros caras lá?
É um cara de fora.

Você acha que você pode, tem condição de fazer uma faculdade, ter uma outra vida, ou não, logo logo você morre?
Depende. Se você quiser fazer uma faculdade, você consegue.

E você?
Já pensei em fazer alguma coisa, mas falta o que fazer.

Mas você faria?
Faria.

E você nunca pensou em levantar uma grana alta vendendo droga, juntar uma grana e daí parar?
Já pensei...

E você não consegue guardar?
Conseguir consegue, mas sempre rola um gasto, alguém que está com você cai preso, você tem que gastar com ele.

Você ajuda as pessoas, paga advogado, essas coisas, a família do cara?
Tem que mandar as coisas pra cadeia e assim vai.

Desde pequeno você convivia com esse tipo de coisa?
Que a gente via que rolava, desde pequeno, mas se envolver, desde os 14 anos em diante.

Com violência também, não só tráfico?
É normal, você sempre vê, briga num canto, um dando tiro em outro...

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