O desafio da ressocialização II

O vício que custa a vida

Pelo menos 42 adolescentes que cumpriam medidas sócio-educativas morreram em Curitiba e região neste ano

Folha de Londrina | 24 de outubro de 2008

Pelo menos 42 adolescentes que cumpriam medidas sócio-educativas em liberdade ou semi-liberdade morreram em Curitiba e Região Metropolitana entre 1º de janeiro e 17 de outubro deste ano. São adolescentes que, além de não conseguirem voltar para a sociedade com uma nova oportunidade, morrem.

A maioria das mortes foi causada por execuções a tiros. A informação é de Sylnara Regina França Borges, psicóloga da Vara do Adolescente Infrator da Capital, que registra casos como o de Luiza (nome fictício), que teve seu filho, Paulo (nome fictício), jovem de 17 anos, assassinado com três tiros na cabeça devido ao seu envolvimento com o tráfico de drogas no município de Colombo (Região Metropolitana de Curitiba).

A psicóloga realiza o levantamento com base no sistema de dados da Vara. Todos os dias, Sylnara busca nos jornais nomes de adolescentes que morreram. Os nomes são confrontados com as informações do Serviço Funerário Municipal e com a base de dados da Vara. Este é o único levantamento realizado que contabiliza quantos adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas morrem.

Foi pelo jornal que Luiza soube da morte de seu filho. "No dia 13 (de fevereiro deste ano), numa quarta-feira, eu estava de folga do trabalho e ele não tinha aparecido em casa. Comecei a passar mal, um aperto no coração e não sabia do que. Na quinta de manhã fui trabalhar. A menina (que trabalha com Luiza) estava com um jornal daquele dia e disse: ‘Tem um menino aqui no jornal que eu acho que é o Paulo"’, lembra a mãe.

De acordo com o levantamento de Sylnara, entre janeiro e novembro de 2005, 40 meninos e meninas que cumpriam medidas sócio-educativas morreram. Durante todo o ano de 2006, foram 54 jovens mortos e, em 2007, 38. "Eu vejo que o momento da violência e da criminalidade está ligado a uma série de coisas, desde a mídia que incentiva o consumismo", analisa.

Para ela, a principal fonte da violência é o uso de drogas. "O uso abusivo de drogas está ligado diretamente à desestruturação da família", aponta Sylnara. A Delegada do Adolescente, Aline Manzatto, acrescenta que a causa da morte dos jovens egressos também é o envolvimento com drogas. "Eu não sei a porcentagem, mas na questão das mortes são os adolescentes envolvidos com a droga. Ali o tráfico está muito envolvido mesmo", analisa.

Mobilização social
Não é apenas o Estado que deve atuar no combate à mortalidade dos jovens que cumprem ou não medidas sócio-educativas. Na opinião da secretária de Estado da Criança e Juventude, Thelma Oliveira, a união de forças dos diversos setores da sociedade pode reduzir índices nacionais em que 70% dos jovens morrem por uma causa evitável, as chamadas mortes violentas. Thelma cita ainda um levantamento da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), que mostra que 60% das vítimas de homicídio têm alguma relação com a droga.

"Nós, enquanto sociedade, conseguimos reduzir a mortalidade infantil, com a presença do Estado, de organizações. E agora nós estamos perdendo nossos jovens para o tráfico e essa não é uma situação que a sociedade tem que se acostumar, temos que reagir mesmo coletivamente e com a indignação necessária para que a gente consiga intervir de fato nessa situação", afirma.

A Sesp foi procurada pela Reportagem, para que o secretário Luiz Fernando Delazari comentasse o assunto, mas a FOLHA foi informada que ele não poderia atender ao pedido de entrevista.


Papel da família é decisivo
Para evitar que medida sócio-educativa cumprida pelo adolescente fique prejudicada, é necessário que a família também seja alvo de um atendimento. "É importante que tenha integração com a medida senão não faz nenhum sentido", afirma o coordenador de sócio-educação da Secretaria de Estado da Criança e Juventude, Roberto Peixoto.

A secretária de Estado da Criança e da Juventude, Thelma Oliveira, aponta outra alternativa para evitar que os jovens envolvidos no crime morram ou reincidam. "Uma família que tem um filho ameaçado tem que mudar de lugar para se proteger e proteger seu filho. Esse menino pode morar com uma tia, com uma avó, em algum lugar. Esses cuidados, que daí o Estado não consegue chegar, essa proteção quase que individual é uma questão dificil de ser alcançada. Acho que tem que haver um esforço de todas as pessoas, de todas as entidades voltadas à protegê-los", diz.

Uma característica comum entre as famílias dos adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas e um dos principais fatores que motivam o envolvimento do jovem em atos infracionais e ainda o fracasso da ressocialização é o que a diretora do Cense Fazenda Rio Grande chama de família desestruturada. "A mãe desmoralizada é aquela que não tem autoridade sobre o filho. Ele diz ‘você não pode mandar em mim porque traz homem pra dentro de casa, ou não vive dentro de casa. Porque não me dá o que comer, vive bêbada’. O pai é a mesma coisa", exemplifica.

Ao contrário da opinião da diretora Margarete, a secretária Thelma acredita que existe uma idéia falsa da família estruturada que é a "do comercial de margarina", uma família sem problemas, idéia essa que precisaria acabar. "Mas toda família tem problemas e é um núcleo de contradição, de aprendizagem, de poderes pequenos e grandes e de conflitos. Toda família é ao mesmo tempo estruturada e desestruturada", apontou Thelma.

Entre os fatores mencionados pela secretária estão a quebra de vínculo (com a mãe e com o pai) e a ausência de limites. "A gente assite hoje a um fenômeno no Brasil que é um aumento de famílias inteiras criadas só por mulheres (veja infográfico). A função da mulher na educação é chamada de função materna, que é a de nutrir, alimentar e proteger. E a função paterna é a função do não, do limite. É possível uma mulher ou um homem cumprir as duas funções, mas é muito mais difícil", explicou Thelma. De acordo com ela, a ausência de limites seria um fator de risco determinante para o ato infracional.


Pais pedem internação dos filhos
"Os pais têm vindo com muita frequência aqui na Vara pedir para a gente deixá-los internados aqui, ou seja, presos aqui na unidade, porque aqui é uma cadeia, uma delegacia, porque o adolescente está ameaçado de morte pelo traficante", conta a juíza da Vara do Adolescente Infrator, Maria Roseli Guiessman, que evidencia o drama vivido pelos familiares de jovens traficantes e usuários de drogas que já passaram por uma medida sócio-educativa.

O relato da juíza demonstra exatamente o que fez a mãe do adolescente Paulo. "Eu mesma, várias vezes cansei de pedir para promotora, para juíza, deixar ele (na Delegacia do Adolescente), porque ele estava correndo riscos sérios. Aí ele começou a se envolver com gente mais séria, gente mais da pesada", lembra Luiza.

A delegada Aline Manzatto, da Delegacia do Adolescente (DA), também encontra casos dos próprios jovens que procuram a internação para não serem mortos. "Alguns chegam aqui pedindo para que sejam apreendidos porque eles estão com medo de morrer. Já tivemos algumas situações dessas aqui. Eles chegam falando ‘me prende porque senão vão me matar’. Obviamente a gente não apreende, a gente encaminha para a Vara (do Adolescente Infrator), que passa ele para um local de atendimento".

De acordo com Maria Roseli, não seria possível internar um adolescente que não tenha um ato infracional de natureza grave, ou seja, que é praticado com violência ou grave ameaça à pessoa e nem aquele que não tenha sido submetido ao devido processo legal, que não foi ouvido em audiência. "Só nestes casos que a gente pode apreender, por descumprimento de medida ou outra coisa", explica. "Como você vai decretar uma prisão? Não pode. É complicado e eles vêem como última saída porque eles já percorreram. Tentaram hospitalizar e não conseguiram, já tentaram comunidade terapêutica e não conseguiram, quer dizer, é última tentativa de salvar o adolescente", afirma a juíza.

Porém, a coordenadora do Centro de Sócio Educação (Cense) da Fazenda Rio Grande, Margarete Rodrigues, lembra que, além de garantir a convivência familiar e comunitária, a permanência dos adolescentes em meio aberto tem o objetivo de não isentar a família de sua principal responsabilidade. "Algumas famílias ficam boa parte do tempo dizendo ‘eu não dou conta desse menino’, aí chega aqui vê que ele está tranquilo, desintoxicado, voltou a ser um menino afetivo. (A família) quer dizer pra gente ‘toma que você é quem sabe lidar com ele, fica aí’. Aí é outro problema. Quando a família começa a elogiar muito o nosso trabalho, você é obrigado a dizer ‘o filho é teu, o Estado está aqui para dar um apoio para você melhorá-lo, mas o filho é teu"’, ressalta.


A história de Luiza e Paulo
Luiza percebeu o envolvimento de Paulo com o tráfico de drogas quando o adolescente, aos 13 anos, começou a tirar de dentro de casa objetos domésticos como televisão, rádio, centrífuga, panelas, roupas e até alimentos. A mãe conta que, do consumo de maconha, Paulo passou para a dependência em crack e roubava para sustentar o vício. O contato com o pai era raro. "Não sei nem explicar como aconteceu isso. Não fumo, não bebo. Nunca usei drogas", afirma Luiza, que acredita que o envolvimento do adolescente começou por influência dos amigos.

Mesmo depois de várias passagens pela Delegacia do Adolescente, em Curitiba, o jovem continuou cometendo roubos.

Depois de um mês da volta para sua casa, foi morto. Luiza acredita que o motivo de sua morte foi uma dívida com traficantes de drogas. "Eles (Justiça, Cense de Fazenda Rio Grande) fizeram todo possível, mas ele não quis ajuda. Ele não quis se ajudar. Se ele quisesse ajuda, ele teria saído dessa, mas ele não quis se ajudar. Ele não quis, ele não quis, ele não quis. Perdi meu filho para as drogas. Tentei salvar, mas não consegui. Um meninão...", lamenta a mãe.

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