Eles querem a chave do carro

Mesmo sem idade adequada para dirigir, adolescentes insistem em usar os veículos dos pais. 21% dos curitibanos com 14 anos já dirigiram carro

Gazeta do Povo | 30 de janeiro de 2011

Pais são colocados à prova em inúmeros lares brasileiros por um mesmo motivo há anos: filhos adolescentes que já sabem dirigir insistem em sair com o carro da família para ir à escola, shoppings, festas. Vencidos pelo cansaço ou adeptos à cultura de que os filhos devem aprender a dirigir desde cedo, há pais que acabam cedendo à pressão e liberam a chave do veículo. Forma-se, assim, uma combinação (adolescente + direção) que tem tudo para gerar complicações. No ano passado, 63 jovens com menos de 18 anos foram apreendidos e encaminhados à Delegacia do Adolescente por estarem dirigindo pelas ruas de Curitiba. Em metade dos casos, os adolescentes foram responsáveis por acidentes, segundo o Batalhão da Polícia de Trânsito (BPTran).

Entretanto, esses números não demonstram a dimensão do problema. Pelo menos 21% dos adolescentes curitibanos com 14 anos que frequentam a 8.ª série do ensino fundamental já dirigiram um veículo motorizado. O dado faz parte da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE ) em 2009. O índice em Curitiba é maior que a média nacional de 18,5% e a estimativa dos especialistas é que nas idades que compreendem o ensino médio (15 a 17 anos) o número seja ainda maior.

Permitir que adolescentes dirijam veículos contraria a legislação. O Código de Trânsito Brasileiro estabelece que o processo de habilitação só pode ser iniciado aos 18 anos de idade do futuro condutor, com participação obrigatória em um curso de formação. A determinação não coloca em dúvida a capacidade e a habilidade dos adolescentes de manobrar o veículo, mas a maturidade em lidar com a dinâmica do trânsito. “Qualquer chimpanzé consegue dirigir um carro. O problema não é mexer com a máquina, mas tomar as decisões. Dirigir é uma coisa, conduzir é outra completamente diferente”, exemplifica o especialista em trânsito Celso Alves Mariano.

De acordo com estudiosos e profissionais da área, os adolescentes até podem apresentar melhor desempenho de visão ou reflexo, mas eles ainda não dominam as negociações básicas do trânsito nas ruas, como relacionamento com outros motoristas e pedestres e o cumprimento da legislação. A necessidade de ser admirado pelo grupo que faz parte e a vontade de se envolver em situações desafiadoras, comuns na adolescência, também representam um risco para o desempenho dos jovens no trânsito.

Cúmplices
Quando são os pais que autorizam os filhos a assumir a direção, são deixados para trás a legislação que proíbe a prática, a preocupação com os riscos que o trânsito oferece, assim como a autoridade paterna em garantir aos jovens a prática da cidadania. Na avaliação de Mariano, essa situação reflete a falta de prioridade dada ao trânsito pela sociedade. “A educação começa em casa e a responsabilidade dos pais ou responsáveis é impedir que os adolescentes tenham acesso ao carro.”

O sociólogo e especialista em educação para o trânsito Eduardo Biavati considera que os pais são, nesses casos, “os cúmplices da violência em uma permissão negociada pelas famílias”, quando familiares mais velhos mantêm a tradição de ensinar os jovens a dirigir. “Já vi muitos pais desesperados porque seus filhos se envolveram em acidentes graves, mas foram eles mesmos que entregaram a chave do carro”, critica.

E como resistir à pressão? Os especialistas acreditam na reflexão conjunta, com pais e filhos, sobre a importância e a gravidade que o trânsito representa. Entram nesse debate o questionamento sobre a direção por adolescentes, quais os eventuais problemas que podem acontecer e se todos – jovens e famílias – estão preparados para as graves consequências. “Os pais estão preparados para saber que seu filho se machucou ou foi o causador de um grave acidente?”, provoca Mariano.

Neste momento, o papel dos pais é impor limites ao jovem, conforme afirma a psicóloga especialista em trânsito Adriane Picchetto Machado. “Esta é a maior dificuldade, muitos pais não sabem dizer não e impor limite aos filhos”, diz. “É como se dizer não fosse contraindicado na formação, mas isto organiza a vida em sociedade e o trânsito é de todos."


Crianças no volante, algo comum no interior
Carolina Gabardo Belo e Dirceu Portugal

Se na cidade grande adolescentes já saem com o carro dos pais pelas ruas, no interior essa prática é ainda mais recorrente. Márcio Cardoso Ferraz começou a dirigir motocicleta aos 12 anos na propriedade rural onde morava, em Araruna, no Noroeste do Paraná. Aos 13 anos, para ajudar o pai na roça, começou a dirigir o trator da família. A fascinação pela direção levou Ferraz, hoje com 32 anos, a optar pela profissão de caminhoneiro. “Comecei a dirigir cedo por paixão pelo volante e não por necessidade”, conta. Ele lembra que enquanto o funcionário não liberasse o volante, não descia do trator. “Era um piolho da máquina, infernizava a vida do funcionário até liberar a direção”, diz.

Com dois filhos de 14 e 9 anos e uma menina de 6 anos, Ferraz conta que já começou a incentivar os filhos a pegar o volante. “Quando vamos para o sítio, a menina senta no meu colo e vai guiando o carro, ela dirige bem. Como tive a oportunidade de aprender a dirigir cedo, não vou barrar meus filhos”, argumenta Ferraz. Entretanto, apesar de incentivar as crianças a dirigir, ele garante que não vai liberar o carro antes de os filhos tirarem a carteira de motorista. “Se der algum problema, serei o responsável. Dirigir é só no sítio, onde não há perigo de atropelar ninguém”, diz.

Marcelo (nome fictício) tinha 14 anos, morava em uma propriedade rural, próxima a Campo Mourão, quando seu pai o incentivou a dirigir. O estímulo, segundo ele, era para que quando os pais precisassem de ajuda, ele soubesse dirigir. Na primeira tentativa, enquanto a família dormia, o rapaz bateu no paiol do sítio. “Ele [o pai] ficou muito bravo e disse que me ensinaria a dirigir. Ele me levou na Estrada Boiadeira. Foi lá que eu aprendi”, conta.

Hoje, com 43 anos, Marcelo já ensinou o filho de 13 anos a dirigir. “Ensinei por instinto. Ele só anda nas ruas do bairro ou no sítio dos avós. Algumas vezes foi no mercado. Sempre alerto para não abusar da velocidade”, comenta. Marcelo acredita que ensinar o filho a dirigir sem ter idade para tirar a carteira também trouxe problemas a família. “Mesmo pedindo para não sair com o carro, nos finais de semana, sou obrigado a esconder a chave.”

Do portão para dentro
Em Curitiba, a professora Simone Negrello costuma dialogar com seu filho Felipe Augusto Negrello, 16 anos, sobre a responsabilidade e os riscos que envolvem o ato de dirigir. O adolescente aprendeu a conduzir aos 13, mas isso não significa que ele saia pelas ruas conduzindo o carro da família, atividade que faz apenas no pátio de casa, “do portão pra dentro”. Ela conta que em casa todos são adeptos ao pensamento de que toda ação acarreta uma reação. “E às vezes a reação não é tão boa. Eu brinco com meu filho que não tenho dinheiro para bancar o que vem depois e muitas vezes acontecem coisas que o dinheiro não paga”, afirma.

Para reforçar o argumento, Simone recorre ao passado da família, que teve casos de adolescentes motoristas. O tio do garoto foi detido algumas vezes por dirigir indevidamente e coube ao avô contornar a situação embaraçosa. “Estes jovens são muito da geração do ‘não dá nada’, eles estão demorando muito para amadurecer”, avalia a professora.

Mesmo com a vontade de poder dirigir e contando os anos para começar com o processo de habilitação, Felipe sabe que terá de esperar até os 18 anos e concorda com a determinação da mãe. Para ele, ter acesso ao carro garantiria comodidade e rapidez para ir à escola ou à casa de amigos, mas o risco de ser pego em uma infração ou até mesmo se envolver em acidentes faz com que ele prefira aguardar a idade correta. “É por isso que eu não insisto em sair com o carro”, conta o jovem.


Fique atento!
Na hora de convencer os pais a permitir a saída com o veículo, os adolescentes usam diversas estratégias:

- Distância – “É só uma voltinha. Vou aqui do lado, na padaria. Já volto.”
- Maioridade – “Daqui a uns meses/dias eu completo 18 anos. Não faz diferença.”
- Exemplo – O fato de os pais não respeitarem leis de trânsito pode desencadear comentários, como “Já que o pai não segue a lei, eu também posso dirigir sem ter idade para isso”.
- Amigos – “Meu amigo já dirige e não teve problema.”


O que diz a lei
O Código Brasileiro de Trânsito proíbe a condução de veículos por menores de 18 anos. Saiba o que fazer para não fugir do que a legislação determina:

- Para participar do processo de habilitação o candidato a condutor deve ter 18 anos ou mais.
- Dirigir sem ter carteira de habilitação ou permissão para dirigir é considerado infração gravíssima, passível de multa e apreensão do veículo.
- Os adolescentes flagrados na direção, assim como seus pais ou responsáveis, estão sujeitos ao cumprimento de medidas socioeducativas.


Jovens flagrados dirigindo são encaminhados para palestras
Embora seja considerada uma medida socioeducativa inovadora no Paraná, o ciclo de palestras sobre trânsito a adolescentes flagrados na direção teve apenas uma turma desde agosto do ano passado, quando foi lançada. Na época, 15 jovens e seus responsáveis participaram do encontro promovido por uma parceria entre a Vara do Adolescente Infrator e o Departamento de Trânsito do Paraná (Detran). Os dois órgãos afirmam que uma nova turma deve ser convocada para assistir a palestras pré-agendadas para o mês de fevereiro. A expectativa é de que outros 15 adolescentes participem da atividade.

Demora
O período eleitoral e o número insuficiente de jovens para montar uma nova turma foram os fatores apontados para a demora entre um ciclo de palestras e outro. De acordo com a técnica judiciária da Vara do Adolescente Infrator, Rosemary Oliva, mesmo passados alguns meses do delito, a demora não compromete a aplicação da medida. Os adolescentes podem cumprir a determinação do juiz até os 21 anos de idade e, dependendo da gravidade do ato infracional, como o envolvimento em acidentes com vítimas, a medida pode ser mais severa.

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