Abandono é falta de Atitude

A família, a sociedade e o Estado podem – e devem – tomar decisões que mudam a condição de idosos fragilizados e determinar o limite do risco social e do bem-estar

Gazeta do Povo | 24 de fevereiro de 2011

Anna Paula Franco e Carolina Gabardo Belo

A interferência de vizinhos na rotina de um senhor de 87 anos pode ter sido a diferença entre a vida e a morte do homem. Morador do Jardim Botânico, em Curitiba, o idoso, que vive sozinho na casa de madeira mal cuidada, encravada entre boas residências do bairro, era sempre observado pela vizinhança por causa do hábito de recolher entulhos no quintal. Até que há uma semana, perturbado pelo silêncio e aparente sumiço do senhor, que já durava alguns dias, o empresário Manuel Reis chamou a polícia. “Temi que ele estivesse morto.”

Dentro da casa, os policiais encontraram o idoso, deitado na cama, num quarto escuro. Lixo, sujeira, bagunça e sinais de roedores e baratas denunciavam a incapacidade dele de cuidar da própria saúde. Há três dias ele não comia, por isso não saía mais no quintal. Praticamente cego, a limpeza da casa e a higiene pessoal também haviam sido negligenciadas há muito tempo.

A família, que raramente visitava o idoso, foi informada da situação pelo vizinho. Quase uma semana depois do flagrante de abandono, nada havia sido feito. Os parentes só apareceram depois de receberem um telefonema da polícia. A atitude extrema foi a última alternativa para mudar a situação. “Há dois anos procuro a prefeitura e a Secretaria de Saúde para, pelo menos, limpar o terreno. Sem a presença da família, ele não tem condições de se cuidar”, conta a advogada Marlei Seibel, esposa de Reis.

Os filhos do idoso – quatro no total, dois deles residentes em Curitiba – tentam agora decidir que providências tomar em relação ao pai. Um deles, um porteiro de 62 anos, menciona que o gênio difícil do pai, severo e de temperamento arredio, sempre foi um impedimento para o relacionamento familiar. “Ele sempre foi muito autoritário e independente. Nos tocava de casa”, conta.

Surpreendido pela condição precária de sobrevivência do sogro, o genro diz que os filhos temiam as palavras duras e a resistência do pai aos cuidados. “Não sabia que a situação estava assim. Agora temos que tomar providências urgentes”, diz. Depois do Boletim de Ocorrência e da formalização da denúncia no Ministério Público (MP), a família foi obrigada a assumir os cuidados, ainda que precários. “Não há justificativa que tire dos filhos a responsabilidade pelo cuidado com os pais. Nem mesmo a péssima qualidade do relacionamento paterno”, explica a promotora de Justiça Rosana Beraldi Bevervanço, coordenadora do Centro de Apoio das Promotorias de Defesa do Idoso e do Portador de Deficiência Física. O abandono é crime, de acordo com o Estatuto do Idoso. A pena mínima é de dois meses a um ano de prisão, além de multa, nos casos sem agravantes.

Final feliz
A reação diante de uma situação de risco e de maus-tratos também mudou a vida da idosa Maria Eugênia Braz, de 110 anos. Mãe de uma cliente da promotora de eventos Lurdes Tangerino, de 54 anos, a “Vózinha”, como é chamada pelos familiares, foi resgatada da casa de uma das filhas, onde era maltratada e não recebia os devidos cuidados.

Lurdes foi buscar a idosa em Campinas, no interior de São Paulo, depois de promover o reencontro entre ela e outra filha, Apare­cida Maria, de 80 anos, que estava afastada da idosa havia dez anos. Dois anos antes, Eugênia havia sofrido um acidente vascular cerebral (AVC) e sofria as sequelas de uma queda que lesionou sua coluna. “Doeu muito ver aquela situação. Senti que tinha que trazer a Vózinha para minha casa”, lembra Lurdes. Os sete filhos de Maria Eugênia concordaram prontamente com a proposta de Lurdes, que voltou para Curitiba com a nova integrante da família.

Diferente do que acontece em muitas famílias compostas por idosos que precisam de cuidados especiais, Maria Eugênia é o centro das atenções na casa de Lurdes. A rotina e a casa da família foram adaptadas para receber a nova moradora. Lurdes deixou os negócios sob responsabilidade da filha e contratou uma empregada. Maria Eugênia tem um quarto só para ela e a refeição segue uma dieta especial produzida pessoalmente pela dona da casa.

Quando chegou à casa de Lurdes, há dois anos, Maria Eugênia estava lúcida e divertiu a nova família com diversas histórias de sua vida, que começou na região rural de Barretos (SP) em 1900.

Há dois meses Maria Eugênia teve um novo AVC, que prejudicou sua fala. Desde o começo do ano ela é acompanhada pelo programa de Atendimento Domiciliar em Saúde (ADS). O geriatra Clóvis Cechinel conta que o estado de saúde dela é grave. Recém-recuperada de uma pneumonia e de uma desidratação, ela também sofre com a pressão alta. Porém, os cuidados que recebe fazem toda a diferença no seu quadro clínico. “Carinho é fundamental”, garante. “Tenho verdadeiro amor pela Vózinha. Ela é como se fosse minha mãe”, conta Lurdes.


Registro de acolhida e abandono
Tanto o abandono como o acolhimento de idosos em situação de risco requerem formalização. Os registros protegem os beneficiados e as famílias acolhedoras e também ajudam as vítimas de violência na responsabilização dos envolvidos.

Apesar de não ser realizado com frequência, o acolhimento de idosos por pessoas que não fazem parte da família precisa ser registrado em cartório ou no Ministério Público, mesmo que o idoso manifeste seu desejo de mudar de casa. A formalização é semelhante ao reconhecimento de união estável e consiste em uma declaração que atesta o acolhimento pela nova família.

Quando a pessoa acolhida perde a lucidez e torna-se incapaz, o encaminhamento exige a interdição judicial, em que um juiz designa o curador responsável por cuidar do idoso e de seus bens, que também precisa prestar contas do atendimento.

A responsabilidade inicial pelo bem-estar do idoso é da família consanguínea. “É dever dos filhos prestar cuidados diretos, viabilizar um cuidador para atenção material e de saúde ou ainda providenciar internamento para garantir o envelhecimento digno dos pais. Se não há como proporcionar isso, seja por recusa do próprio idoso ou falta de condições, é preciso formalizar essa situação no Ministério Público. Daí serão tomadas as medidas necessárias para garantir a segurança e bem-estar desse idoso, como ocorre nas denúncias de maus-tratos ou risco social”, explica a promotora Terezinha Resende Carula. (APF e CGB)

Serviço:
Disque-Idoso: 0800 410 001. Ministério Público do Paraná: Avenida Marechal Floriano Peixoto, 1.251, Curitiba. Contato: (41) 3250-4793.

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